domingo, 27 de maio de 2012

E se tudo se resumir a deixarmo-nos de merdas? Largarmos a merda do romance, a puta da arte e morrermos no nosso alheamento, nus e crus, fodendo de costas para a merda do amor, para a puta da razão. Tomara que todas as minhas chagas sarassem tão rápido quanto o teu adeus. Tomara que tudo se resumisse a um jogo de xadrez. as peças na cadeira e a vida no tabuleiro

sábado, 26 de maio de 2012

V
Quando estava aborrecida, abria o Livro do Desassossego à sorte, como quem joga tetris sem encaixar as peças. No fundo, gostava de fragmentos. Não discutíamos, limitavamo-nos, a maior parte do tempo, a sorrir no vazio das nossas ilusões, sem saber o que estávamos a fazer ali. Eu tinha medo e ela também. 
- Vai buscar a Justine e lê-me as últimas páginas ao ouvido. Ninguém precisa de saber que a virtude não leva a lado nenhum.
E eu segredava-lhe o expoente da devassidão, alterando o ritmo à medida dos espasmos do seu corpo dormente, na exacta proporção da poesia dos seus contornos. E a música...ah! a música, a valsa erótica que nos acompanhava nesta dança cega até a noite terminar, tocava ininterruptamente até acabarmos sepultadas no crepúsculo do nosso desejo. 

sexta-feira, 25 de maio de 2012


I
Aquele dia não se estava a revelar o melhor para tomar decisões difíceis. Voltei a vê-la, ao longe, a tropeçar nos próprios pés, a perder-se a cada esquina da cidade onde nunca se chegou a encontrar. O meu café arrefece em cima do Código Civil. Talvez devesse voltar para casa. Tornou-se impossível estar longe dos meus lençóis e não poder matar cada contrariedade com um orgasmo. A minha libido conduz-me vezes sem conta para aquelas quatro paredes carcomidas pela humidade. Aquele quarto, cujo odor insuportável a mofo e a naftalina me puxava o vómito mais do que o bolor que se entranhava nos móveis. À porta do prédio, ao lado do degrau que me ajudava a chegar à campainha, os quatro sacos de plástico com os restos do jantar do dia anterior eram abertos pelos gatos que habitavam a redondeza. Lá dentro, uma centena de livros apodrecia dentro de um armário sem porta. As páginas amarelas, as manchas de café e as frases sublinhadas com um lápis a precisar de ser afiado, tudo me guiava, irremediavelmente, para o precipício da decadência.
II
Lembro-me da primeira vez que me deitei na cama dela. Adormeci a ler Anna Karenina depois de a convencer a ir lavar o cabelo. Acordei quando a vara que prendia a cortina da banheira se partiu e caiu no azulejo. Não abri os olhos. Ainda a ouvi dizer uns quantos palavrões na casa de banho, mas quando a porta do quarto se abriu nada mais senão silêncio. Gestos mudos faziam adivinhar que ela continuava ali, quiçá nua, a ponderar cada movimento naquele sítio moribundo para não me acordar. Ao fim de um bocado, o meu sexo estava molhado e senti-me corar. Obriguei-me a recuar, a pensar no sistema da ordem jurídica, nos princípios fundamentantes de direito que deveria estar a estudar, até que umas mãos que não as minhas se precipitaram entre as minhas coxas.
III
Demorou um tempo até voltar a vê-la de novo. Não falámos desde essa madrugada, quando ela me deu um passe de autocarro com três viagens e se virou para o lado oposto. Quando o semestre começou, via-a sair da biblioteca e segui-a até casa. Deve ter-se apercebido da minha falta de jeito para espionagem e deixou a porta aberta. Entrei.
- Cortaste o cabelo. – observou, sem desviar os olhos do quarto volume de Guerra e Paz.
- Sim, é sempre bom variar. – respondi-lhe, sem antes ponderar a hipótese de tentar quebrar aquela atmosfera dizendo-lhe que tinha sido a cabeleireira quem, de facto, mo tinha cortado.
Começou a desabotoar os botões da blusa rendilhada, revelando, aos poucos, o derradeiro esboço do erotismo. Do nada tinha-a prostrada à minha frente, sem qualquer tecido a cobrir-lhe a epiderme, os seios arrepiados e os pés descalços. A partir desse dia passámos a ler nuas.

IV
Sempre gostei de mortes lentas. E foi precisamente naquele cenário obsessivo, por vezes onírico, com os cabelos dela a cobrirem o meu peito, que li o Retrato de Dorian Gray. A nossa imaginação alimentava a realidade, imiscuindo-se nela, como se o contrário não fosse mais possível, como se a linha ténue que separava a minha insanidade mental e o meu desejo tivesse sido, irremediavelmente, quebrada. 
Ela vivia como se os dias lhe pertencessem. O ócio não é senão o expoente da liberdade e ela sabia que o tinha de agarrar enquanto era tempo, enquanto não desaprendia de viver livre. Sentava-se sozinha na mesa da esplanada e olhava as pessoas, entre Flaubert e um café gelado. Todos os meses ia ao teatro e não perdia as sextas feiras à tarde com o alfarrabista da Sá da Bandeira a discutir preços dos fins de edições que ele trazia não se sabe bem de onde. Isso e o mercado do quebra costas no segundo sábado de cada mês. Gostava da moda vintage, não só por se tratar disso mesmo, moda, mas também por lhe trazer à memória o odor a mofo e naftalina que lhe recordava a casa dos avós na Guarda. Perdia horas a subir e descer a calçada daquela cidade, perpetuando uma existência solitária e sonhadora que se personificava nos edifícios degradados da alta. Inventava-lhes histórias, adivinhava-lhes vida.
Só ia às aulas ao final do dia, gostava de sair da faculdade ao anoitecer, ver a iluminação sinistra do casarão em ruínas que morria lentamente em frente a sua casa e descer a rua com o Código Civil na pasta preta. Não percebia a justiça e, a bem dizer, nem o próprio Direito. Não sabia sequer se poderia separar as duas coisas, se uma não pressupunha a outra. Mas também não se interessava. Cria ser tudo aquilo muito mundano, artificial até. Pensava, muitas vezes, em levantar o braço nas aulas, questionar, inquietar-se, mas a força do tédio vencia-a as mais das vezes, e dos porquês chegava ao para quê no instante seguinte.
É. Os dias não lhe pertenciam, no final de tudo.