sexta-feira, 25 de maio de 2012


I
Aquele dia não se estava a revelar o melhor para tomar decisões difíceis. Voltei a vê-la, ao longe, a tropeçar nos próprios pés, a perder-se a cada esquina da cidade onde nunca se chegou a encontrar. O meu café arrefece em cima do Código Civil. Talvez devesse voltar para casa. Tornou-se impossível estar longe dos meus lençóis e não poder matar cada contrariedade com um orgasmo. A minha libido conduz-me vezes sem conta para aquelas quatro paredes carcomidas pela humidade. Aquele quarto, cujo odor insuportável a mofo e a naftalina me puxava o vómito mais do que o bolor que se entranhava nos móveis. À porta do prédio, ao lado do degrau que me ajudava a chegar à campainha, os quatro sacos de plástico com os restos do jantar do dia anterior eram abertos pelos gatos que habitavam a redondeza. Lá dentro, uma centena de livros apodrecia dentro de um armário sem porta. As páginas amarelas, as manchas de café e as frases sublinhadas com um lápis a precisar de ser afiado, tudo me guiava, irremediavelmente, para o precipício da decadência.
II
Lembro-me da primeira vez que me deitei na cama dela. Adormeci a ler Anna Karenina depois de a convencer a ir lavar o cabelo. Acordei quando a vara que prendia a cortina da banheira se partiu e caiu no azulejo. Não abri os olhos. Ainda a ouvi dizer uns quantos palavrões na casa de banho, mas quando a porta do quarto se abriu nada mais senão silêncio. Gestos mudos faziam adivinhar que ela continuava ali, quiçá nua, a ponderar cada movimento naquele sítio moribundo para não me acordar. Ao fim de um bocado, o meu sexo estava molhado e senti-me corar. Obriguei-me a recuar, a pensar no sistema da ordem jurídica, nos princípios fundamentantes de direito que deveria estar a estudar, até que umas mãos que não as minhas se precipitaram entre as minhas coxas.
III
Demorou um tempo até voltar a vê-la de novo. Não falámos desde essa madrugada, quando ela me deu um passe de autocarro com três viagens e se virou para o lado oposto. Quando o semestre começou, via-a sair da biblioteca e segui-a até casa. Deve ter-se apercebido da minha falta de jeito para espionagem e deixou a porta aberta. Entrei.
- Cortaste o cabelo. – observou, sem desviar os olhos do quarto volume de Guerra e Paz.
- Sim, é sempre bom variar. – respondi-lhe, sem antes ponderar a hipótese de tentar quebrar aquela atmosfera dizendo-lhe que tinha sido a cabeleireira quem, de facto, mo tinha cortado.
Começou a desabotoar os botões da blusa rendilhada, revelando, aos poucos, o derradeiro esboço do erotismo. Do nada tinha-a prostrada à minha frente, sem qualquer tecido a cobrir-lhe a epiderme, os seios arrepiados e os pés descalços. A partir desse dia passámos a ler nuas.

IV
Sempre gostei de mortes lentas. E foi precisamente naquele cenário obsessivo, por vezes onírico, com os cabelos dela a cobrirem o meu peito, que li o Retrato de Dorian Gray. A nossa imaginação alimentava a realidade, imiscuindo-se nela, como se o contrário não fosse mais possível, como se a linha ténue que separava a minha insanidade mental e o meu desejo tivesse sido, irremediavelmente, quebrada. 

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